terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Nova esperança contra a anemia falciforme.

Produto com poucos efeitos colaterais desenvolvido em Araraquara pode se tornar primeiro medicamento sintético brasileiro
Compostos identificados por uma equipe do câmpus de Araraquara da Unesp mostraram potencial para se tornar uma nova alternativa de tratamento dos sintomas da anemia falciforme. A partir de maio, essas substâncias passarão por testes em camundongos que foram geneticamente modificados para terem a moléstia. Se os resultados forem positivos, a expectativa dos pesquisadores é que esse produto se torne o primeiro fármaco sintético desenvolvido no país. A anemia falciforme é hoje a principal doença genética sanguínea no Brasil e no mundo. (Veja quadro 1.)
O responsável pela descoberta é o professor Jean Leandro dos Santos, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF). O trabalho do pesquisador, realizado durante sua pós-graduação, teve a orientação da professora Chung Man Chin e a contribuição de especialistas da UFRJ, da Unicamp e da Universidad de La República (Montevidéu, Uruguai). O objetivo do grupo é que uma empresa farmacêutica compre a licença da patente já obtida e apoie a continuidade dos estudos.
Desenhando o remédio – O alvo para as investigações foi proposto por Rosenício Eustáquio Nunes, aluno de graduação da FCF que sofre dessa patologia. (Veja entrevista.) Após optar pela pesquisa da doença, a equipe de Chung começou a investigar a atuação da hidroxiureia, principal fármaco usado para o tratamento desse mal. Eles se concentraram, sobretudo, nos pontos da estrutura molecular desse produto que produzem óxido nítrico – responsável pela produção de hemoglobinas fetais, que possuem papel fundamental no controle da enfermidade.
Na etapa seguinte, os cientistas criaram um novo desenho para a molécula do medicamento, que teve alguns de seus componentes retirados e recebeu fragmentos da estrutura de outro fármaco, a talidomida. “Estudos recentes apontaram que a talidomida estimula a produção de hemoglobina fetal”, esclarece Santos. Esse processo, chamado de modificação molecular, é atualmente o mais utilizado pela indústria farmacêutica, pois leva à obtenção de novos fármacos com maior rapidez e menor custo que outras técnicas disponíveis.
Nesse procedimento, os farmacêuticos iniciam sua busca com base em uma droga com atividade biológica predeterminada e acrescentam efeitos com o objetivo de aumentar a potência da substância, tornar sua ação mais seletiva, diminuir sua toxicidade ou neutralizar efeitos colaterais, por exemplo. No caso da nova droga, Santos eliminou componentes genotóxicos – que causam mutações genéticas –, tanto na hidroxiureia como na talidomida. Isso faz com que o novo composto não tenha potencial cancerígeno.
Outro benefício desse método é criar uma droga que combate, simultaneamente, diversos sintomas da doença. Além de produzir hemoglobina fetal, testes químicos comprovaram que o composto possui capacidades analgésicas, anti-inflamatórias, vasodilatadoras e antiagregantes (que ajudam a desobstruir vasos sanguíneos). Isso porque a molécula criada assemelha-se a um “Frankenstein farmacêutico”, com uma estrutura formada de pedaços de diferentes substâncias com atuações específicas. (Veja quadro 2.) Medicamentos dessa natureza são chamados de híbridos, simbióticos ou “medicamentos de chaves múltiplas”, porque se encaixam em mais de uma estrutura receptora nas células.
Fármaco nacional – A professora Chung ressalta que ainda não existe um medicamento sintético brasileiro. “A inovação em pesquisa e desenvolvimento de fármacos custa caro e a indústria nacional não assume riscos, buscando associar-se a um estudo apenas na fase final”, afirma. Para se ter uma ideia de quão atrasada está a busca por novos remédios no Brasil, a especialista ressalta que apenas em 2008 a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) regulamentou a pesquisa em seres humanos.
Na opinião da professora, outro fator que contribui para esse déficit é a cultura dominante no meio acadêmico, que sempre privilegiou a publicação de artigos em revistas científicas, em detrimento da busca de descobertas. “Quando um cientista investiga novos fármacos ou formulações farmacêuticas, nem sempre pode escrever artigos, pois, sem ser protegida intelectualmente através da patente, a ideia/invenção pode ser copiada por outros”, adverte.
Ratos transgênicos – Os testes em animais devem durar quatro meses e serão feitos por Carolina Lanaro e Carla Fernanda Franco Penteado, pós-doutorandas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A investigação envolverá camundongos modificados geneticamente para terem anemia falciforme.
Os camundongos serão divididos em dois grupos. “Um grupo será submetido a doses diárias do novo composto, para confirmar a atividade analgésica e anti-inflamatória do fármaco, e o outro deve receber apenas uma dose, para verificar o tempo de resposta da substância”, detalha Carolina. As cientistas têm a orientação do professor Fernando Ferreira Costa, atual reitor da Unicamp. A instituição é parceira do estudo, tendo registrado a patente do composto em sua agência de inovação, a Inova.

Jornal da UNESP